Numa, fria e chuvosa, noite de março de 1953, o destino
me acordou e, aos gritos, me avisou ter chegado o
momento de eu vir à luz.
Ainda que assustado com os gritos do destino, ousei
questiona-lo sobre a que luz ele se referia.
Não vejo luz alguma, lhe disse.
Era noite e o ambiente no qual eu haveria de nascer
estava escuro, frio e húmido
Irritado com a minha insolência, o destino ignorou os
meus protestos e, transpirando impaciência
empurrou-me bruscamente rumo à saída do ventre que
me agasalhava.
Assustado e sem entender o que acontecia, caí em uns
braços que me ampararam e, que mas tarde, viria saber
tratar-se da parteira que me assistiu em minha contenda
com o destino.
Aquela rude senhora foi a primeira pessoa com a qual
me deparei neste mundo, e assim iniciou jornada que
hoje entendo ser a minha vida.
Ao abrir meus olhos, a primeira coisa que percebi foi a
imensidão da pobreza na qual a minha família vivia.
Tudo ou tudo, eu deva dizer nada, naquele lugar era
muito pobre. A pobreza estava nas paredes de adobe, que
mal se sustentavam de pé, nas telhas por onde a lua
bisbilhotava tudo que acontecia naquela casa, e os
pingos da chuva molhavam tudo que intendiam molhar.
O cheiro do recinto era insalubre, a lenha molhada que
queimava num velho fogão a lenhas, montado sobre três
pedras, enchia o ambiente de fumaça escura, que fazia
lacrimejar os olhos de qualquer vivente que se atravesse
a se aproximar muito dele.
O cheiro de querosene, da velha lamparina, impregnava
tudo a sua volta. O vento frio que entrava pelas frestas
das paredes, soprava insistentemente tentando apagar a
chama que iluminava aquele pequeno cómodo, mas a
chama da lamparina apesar de fraca, era valente e lutava
heroicamente para se manter acesa e iluminar um pouco
aquele pequeno negrinho que acabara de nascer.
2 - Assustado com a dureza da atmosfera onde fui atirado
pelo destino, chorei, chorei muito mesmo. O meu choro
era mais que o choro de um recém nascido, era um
protesto pela brincadeira de mau gosto que o destino
havia feito comigo.
A parteira, sem se dar conta do meu protesto conta o
destino, me colocou nos braços da minha mãe e lhe disse:
- É um negrinho forte, ele está bem, se está chorando é por
que definitivamente esta bem.
Eu não estava bem coisa alguma, eu chorava de pavor, eu
estava apavorado com tamanha pobreza e, a pobreza,
indiferente aos meus protestos, tomou-me firme em seus
braços, agradecida ao destino, sorriu-lhe dizendo estar
feliz com mais este presente, e eu nasci.
Sentindo-se ofendido, pelo que entendeu como sendo
ingratidão de minha parte, o destino deixou-me nos braços
da pobreza e se despediu prometendo ser especialmente
severo comigo.
Chorei alto, protestei e protestei mas nada adiantou, a
pobreza nunca apiedou-se de mim, segurou-me firme em
seus braços e só depois de muito e muito anos de peleja
ela me deixou escapulir.
Aqui e ali, o destino me olhava de soslaio e reafirmava:
- Tu ainda vai sofrer muito negrinho!
Cansado, percebendo ser infrutíferos protestar contra o
destino, deixei de lamentar e protestar e me coloquei de
pé e saí em busca dos meus sonhos, fui em busca do
meu lugar ao sol.
3 - Quebrando pedras sob o sol escaldante, percebi que
este queima, sem piedade, os desprovidos de privilégios.
O sol, inclemente, surrou sem misericórdia a minha pele
escura tornando-a mais escura do que deveria ser.
O sol me bateu, ele me chicoteou o quanto lhe foi possível
me chicotear. O sol fez de tudo para me convencer a voltar
para a sobra, para me convencer de que quem nasce pobres,
como eu nasci, não haveria de encontrar conforto sob a sua
luz.
Do alto do seu trono, o destino assistia, divertido, a minha
petulância em reivindicar um lugar melhor na "sociedade".
Ele zombava da minha ambição, do meu desejo.
O destino se divertia assistindo os meus tropeços,
caçoava dos meus tombos e ria vendo o meu
contorcionismo tentando me desenvencilhar dos braços
da pobreza.
O destino sentia prazer em assistir a minha luta para me
manter de pé, e então ele me empurrava para me derrubar
de novo, ele me empurrava acreditando que diante de
tantos tombos eu desistiria, e ficaria quieto atirado no
chão.
Atirado ao chão eu chorava, eu chora mas me punha de pé
novamente e, já em pé, ainda que com as pernas fracas,
cambaleantes, seguia adiante. Eu havia aprendido a ser tão
duro para com o destino, quanto o destino era duro para
comigo.
Percebendo a minha perseverança diante das dificuldades,
o destino colocou um torniquete em meu pescoço e, o
apertou. Ele sempre apertava o torniquete na mesma
proporção da minha persistência, da minha insistência em
desafia-lo, e eu o desafiava, o desafiava sempre.
4 - Irado, já no primeiro aperto no torniquete, o destino me
privou dos meus entes mais queridos.
Num segundo arroxo, o destino me tirou o que me restava
como família e, diante da minha insistência em desafia-lo,
o destino me colocou em um orfanato onde me esqueceu.
No orfanato, torturado pelos pesadelos, vivi tormentos
inimagináveis, e confessei pecados que nunca havia
pecado, chorei lágrimas que não tinha para chorar, mas não
me deixei vencer.
Combalido, porem de pé, me guardei em minha caminhei e,
a minha recusa em me render às mazelas a mim impostas
pelo destino, o levei à loucura.
Irado ao extremo comigo, o destino me torturava dia e
noite. Cada noite era um castigo diferente, e os castigos,
noite após noite só pioravam.
O destino me torturava mais e mais, ele me fazia ouvir o
ranger dos meus próprios dentes. Um dia, tomado pela
fúria, o destino me empurrou de tal forma que caí e fiquei
no chão. Eu estava humilhado, e foi quando, por descuido,
o destino tropeçou em meus pés e caiu.
O destino caiu exatamente em meus braços e eu o
amparei. Eu o amparei com carinho, eu o acolhi em o meu
peito como se fora ele um filho meu. Tomei o destino em
meus braços e, sob os meus afagos ele se acalmou e, calmo,
ele murmurou: - Santo Deus, como tenho sido perverso
contigo! Eu lhe sorri.
Refletindo paz, o destino retribuiu o meu sorriso com outro
sorriso, acariciou a minha com suas mãos e me deu a luz.
Finalmente nasci.
O Mensageiro - Brasília, agosto de 2012.
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